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VIAGEM APOSTÓLICA À ESPANHA
31 DE OUTUBRO - 9 DE NOVEMBRO DE 1982

SANTA MISSA PARA A BEATIFICAÇÃO DE IRMÃ ÂNGELA DA CRUZ

HOMILIA DO PAPA JOÃO PAULO II

Sevilha, 5 de Novembro 1982

 

Queridos irmãos e irmãs

1. Hoje tenho a felicidade de me encontrar pela primeira vez sob o céu da Andaluzia; esta linda região, a mais extensa e povoada da Espanha, centro de uma das mais antigas culturas da Europa. Aqui encontraram-se múltiplas civilizações que deram origem às peculiares notas características do homem andaluz.

Destes ao Império Romano imperadores, filósofos e poetas; oito séculos de presença árabe apuraram a vossa sensibilidade poética e artística; aqui forjou-se a unidade nacional; das costas vizinhas a este "Guadalquivir sonoro" teve início a formidável façanha do descobrimento do Novo Mundo e a expedição de Magalhães e de Elcano até às Filipinas.

Conheço a origem apostólica do Cristianismo da Bética, fecundado pelos vossos mártires e alimentado pelos vossos Santos: Isidoro e Leandro, Fernando e João de Ribera, João de Deus e o Beato João Grande, João de Ávila e Diogo José de Cádis, Francisco Solano, Rafaela Maria, o venerável Miguel de Manara e muitas outras figuras insignes.

A recordação carinhosa de tanta riqueza histórica e espiritual, é a minha saudação melhor ao vosso povo, ao vosso novo Arcebispo, aos Pastores presentes e a todos os espanhóis, especialmente aos que vieram das Canárias; mas, é sobretudo a voz emprestada a quem tanto deu à vossa gente: ao meu queridíssimo Irmão e vosso amado Cardeal que nos acompanha.

2. Neste quadro sevilhano, circundado como os vossos pátios pela "fragrância rural" da Andaluzia, venho encontrar-me com a gente do campo da Espanha. E faço-o pondo diante dos seus olhos uma filha humilde do povo, tão próxima deste ambiente pela sua origem e a sua obra. Por isso quis deixar-vos uma oferta preciosa, glorificando aqui a Irmã Ângela da Cruz.

Ouvimos nas palavras do profeta Isaías o convite a repartir o pão com o esfomeado, a dar abrigo ao pobre, a vestir o nu, e a não desprezar o irmão (cf. Is 58, 7); porque "se deres pão ao faminto, e saciares a alma do pobre, a tua luz brilhará na escuridão, e as trevas tornar-se-ão como o meio-dia" (Is 58, 10).

Pareceria que as palavras do profeta se referem directamente à Irmã Ângela da Cruz: quando pratica heroicamente a caridade para com os necessitados de pão, de roupas, de amor; e quando, como acontece hoje, essa prática heróica da caridade faz brilhar a sua luz nos altares, como exemplo para todos os cristãos.

Sei que a nova Beata é considerada um tesouro comum de todos os andaluzes, acima de qualquer divisão social, económica, politica. O seu segredo, a raiz de onde nascem os seus exemplares actos do amor, está expresso nas palavras do Evangelho que acabamos de ouvir: "Quem quiser salvar a sua vida, perdê-la-á, mas quem perder a sua vida por Minha causa, encontrá-la-á" (Mt 16, 25).

Chamava-se ela Ângela da Cruz. Como se quisesse dizer que, segundo as palavras de Cristo, tomou a sua cruz para o seguir (cf. Mt 16, 24). A nova Beata compreendeu perfeitamente esta ciência da cruz, e expô-la às suas filhas com uma imagem de grande força plástica. Imagina que sobre o monte Calvário existe, junto do Senhor pregado na cruz, outra cruz "da mesma altura, nem à direita nem à esquerda, mas em frente e muito perto". Esta cruz vazia querem ocupá-la a Irmã Ângela e as suas Irmãs, que desejam "ver-se crucificadas em frente do Senhor", com "pobreza, desprendimento e santa humildade (Escritos íntimos, Primeiros escritos, fol. 1, p. 176). Unidas ao sacrifício de Cristo, a Irmã Ângela e as suas Irmãs poderão realizar o testemunho de amor aos necessitados.

De facto, a renúncia aos bens terrenos e o desapego de qualquer interesse pessoal, colocou a Irmã Ângela naquela atitude ideal de serviço, que define graficamente dizendo-se "expropriada para utilidade pública". De certo modo pertence já aos outros, como Cristo nosso Irmão.

A existência austera, crucificada, das Irmãs da Cruz, nasce também da sua união ao mistério redentor de Jesus Cristo. Não pretendem deixar-se morrer inutilmente de fome ou de frio; são testemunhas do Senhor, morto e ressuscitado por nós. Assim o mistério cristão realiza-se perfeitamente na Irmã Ângela da Cruz, que aparece "imersa em alegria pascal". Essa alegria deixada como testamento às suas filhas e que todos admirais nelas. Porque a penitência é praticada como renúncia ao próprio prazer, para estarem disponíveis ao serviço do próximo; isto supõe uma grande reserva de fé, para se imolar sorrindo, sem reclamar quitações, sem dar importância ao sacrifício próprio.

3. A Irmã Ângela da Cruz, fiel ao exemplo de pobreza de Cristo, pôs o seu instituto ao serviço dos pobres mais pobres, os deserdados, os marginalizados. Quis que a Companhia da Cruz estivesse inserida "dentro da pobreza" não ajudando de fora, mas vivendo as condições existenciais próprias dos pobres. A Irmã Ângela pensa que ela e as suas filhas pertencem à classe dos trabalhadores, dos humildes, dos necessitados, "são mendigas que tudo recebem de esmola".

A pobreza da Companhia da Cruz não é puramente contemplativa, serve às Irmãs de plataforma dinâmica para um trabalho de assistência aos trabalhadores, às famílias sem casa, aos enfermos, aos indigentes, aos pobres envergonhados, às meninas órfãs ou sem escola, às adultas analfabetas. A cada pessoa procuram proporcionar o que lhe é necessário: dinheiro, casa, instrução, roupas, remédios; e tudo, sempre, servido com amor. Os meios que utilizam são o seu trabalho pessoal, e pedir esmola aos que a podem dar.

Deste modo, a Irmã Ângela estabeleceu um vínculo, uma ponte entre os necessitados e os poderosos, os .pobres e os ricos. Evidentemente, não pode resolver os conflitos políticos nem os desequilíbrios económicos. A sua tarefa significa uma "caridade de urgência", acima de toda a divisão, levando ajuda a quem dela necessita. Pede em nome de Cristo, e dá em nome de Cristo. A sua, é aquela caridade decantada pelo apóstolo Paulo na sua primeira carta aos Coríntios: "Paciente, benigna... não procura o seu interesse, não se irrita, não suspeita mal... tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta" (1 Cor 13, 4.5.7).

4. Esta acção de testemunho e caritativa da Irmã Ângela, exerceu influência benéfica para além da periferia das grandes cidades, e difundiu-se imediatamente no meio rural. Não podia ser de outro modo, dado que durante o último quartel do século XIX, quando a Irmã Ângela funda o seu Instituto, a região andaluza vê falirem as tentativas de industrialização e fica sujeita a modos de vida predominantemente rurais.

Muitos homens e mulheres do campo dirigem-se para a cidade, procurando um lugar de trabalho estável e bem remunerado, mas sem êxito. A própria Irmã Ângela é filha de pai e mãe vindos de pequenas povoações para Sevilha, a fim de se estabelecerem na cidade. Aqui trabalhará durante alguns anos numa pequena fábrica de sapatos.

Também a Companhia da Cruz é formada na maior parte por mulheres ligadas a famílias do campo em perfeita sintonia com a gente simples do povo, e conserva os rasgos característicos de origem. Os seus conventos são pobres, mas muito asseados; e estão mobilados com os móveis característicos das casas humildes dos camponeses.

Em vida da fundadora, as Irmãs abrem casas em nove povoações da província de Sevilha, quatro na de Huelva, três em Jaén, duas em Málaga e uma em Cádis. E a sua acção na periferia das grandes cidades desenvolve-se entre famílias de camponeses frequentemente recém-chegadas do campo e instaladas em casas miseráveis, sem os meios indispensáveis para afrontar uma doença, a falta ou a escassez de alimentos e de roupas.

5. Hoje, o mundo rural da Irmã Ângela da Cruz assistiu à transformação das sociedades agrárias em sociedades industriais, às vezes com um êxito impressionante. Mas esta atracção do horizonte industrial, provocou por reflexo um certo desprezo pelo campo, "a ponto de criar nos homens que se dedicam à agricultura a sensação de serem socialmente marginalizados e de incentivar no seu meio o fenómeno da fuga em massa do campo para as cidades e, infelizmente, para condições de vida ainda mais desumanizantes" (Laborem exercens, 21). '

Tal menosprezo parte de pressupostos falsos, dado que tantas engrenagens da economia mundial continuam dependentes do sector agrário, "que proporciona à sociedade os bens necessários para a sua sustentação quotidiana" (ibid.).

Nesta linha de defensora do homem do campo, a Igreja contemporânea anuncia aos homens de hoje as exigências da doutrina sobre a fustiga social, tanto no que se refere aos problemas do campo como ao trabalho da terra; a mensagem de justiça do Evangelho que tem origem nos profetas do Antigo Testamento. O profeta Isaías recordava-nos há poucos momentos: se repartires o teu pão com o esfomeado, "então a tua luz surgirá como a aurora... e a tua justiça irá adiante de ti" (Is 58, 8). Chamada actual naquele tempo e hoje, porque a justiça e o amor ao próximo são sempre actuais.

No decurso do século XX, felizmente no campo mudaram algumas condições que o tornavam desumano: salários baixíssimos, casas míseras, crianças sem escolas, propriedades concentradas em poucas mãos, extensões pouco ou mal exploradas, falta de seguros que oferecessem um mínimo de serenidade para o futuro.

A evolução social e do trabalho melhorou sem dúvida este panorama tristíssimo, no mundo inteiro e na Espanha. Mas o campo continua a ser injustamente excluído do progresso económico. Por isso os poderes públicos devem enfrentar os urgentes problemas do sector agrícola revendo devidamente custos e preços de modo a torná-lo rendoso; dotando-o de indústrias subsidiárias e de transformação que o libertem da praga angustiadora do desemprego e da emigração forçada que aflige tantos queridos filhos desta e de outras terras da Espanha; racionalizando 'o comércio dos produtos agrícolas, e proporcionado às famílias de camponeses, sobretudo aos jovens, condições de vida que os estimulem a considerar-se trabalhadores tão dignos como os da indústria

Oxalá as próximas etapas da vossa vida pública consigam progredir nessa direcção, afastando-se de fáceis demagogias que atordoam o povo sem lhe resolver os problemas, e chamando todos os homens de boa vontade, a coordenarem os esforços em programas técnicos e eficazes.

6. Para avançar neste caminho é necessário que a força espiritual e o amor ao homem que animou a Irmã Ângela da Cruz; que esta caridade que nunca terá fim (cf. 1 Cor 13, 8), informe a vida humana e religiosa de todo o cristão.

Sei que a Andaluzia nutre as raízes culturais e religiosas do seu povo, graças a um depósito tradicional que passou de pais para filhos. Todo o mundo admira as belas expressões de piedade ou festivas que o povo andaluz criou para revestir sensivelmente os seus sentimentos religiosos. Por outro lado, as confrarias e as irmandades criadas ao longo dos séculos, alcançaram influência no corpo social.

Esta religiosidade popular deve ser respeitada e cultivada, como forma de compromisso cristão com as exigências fundamentais da mensagem evangélica; integrando a acção das irmandades na pastoral renovada do Concilio Vaticano II, purificando-as de reservas em relação ao ministério sacerdotal e afastando-as de qualquer tensão interessada ou de partido. Deste modo, essa religiosidade purificada poderá ser um válido caminho para a plenitude de salvação, em Cristo, como eu disse aos vossos Pastores (cf. Discurso na visita ad Limina dos Bispos das províncias eclesiásticas de Sevilha e Granada, 1982).

7. Queridos andaluzes e espanhóis todos: A figura da nova Beata ergue-se diante de nós com toda a sua exemplaridade e aproximação do homem, sobretudo do homem humilde e do mundo rural. O seu exemplo é uma prova permanente daquela caridade que não passa (cf. 1 Cor 13, 8).

Ela continua presente entre a sua gente com o testemunho do seu amor. Desse amor que é o seu tesouro na eterna comunhão dos Santos, que se realiza por amor e no amor.

O Papa que hoje beatificou a Irmã Ângela da Cruz, confirma em nome da Igreja a resposta de amor fiel que ela deu a Cristo. E ao mesmo tempo torna-se eco da resposta que o próprio Cristo dá à vida da sua serva: "o Filho do Homem há-de vir na glória de Seu Pai, com os Seus anjos, e então retribuirá a cada um conforme o seu procedimento" (Mt 16, 27).

Hoje veneramos este mistério da vinda de Cristo, que premeia a Irmã Ângela "conforme o seu procedimento".

 



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