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VIAGEM APOSTÓLICA À ESPANHA
31 DE OUTUBRO - 9 DE NOVEMBRO DE 1982

SANTA MISSA DE ORDENAÇÃO SACERDOTAL

HOMILIA DO PAPA JOÃO PAULO II

Valência, 8 de Novembro 1982

 

Queridos irmãos no sacerdócio
Queridos irmãos e irmãs

1. Somos hoje testemunhas de um grande acontecimento. Cento e quarenta e um diáconos, procedentes de toda a Espanha, vão receber a ordenação sacerdotal. A esta celebração eucarística associam-se numerosos sacerdotes das diversas dioceses da vossa Pátria. Foram convidados a esta cidade para viverem de novo o dia da sua ordenação.

Permiti-me que saúde em primeiro lugar o Pastor desta Igreja particular, os Bispos presentes, os sacerdotes e seminaristas, os que se dedicaram a Deus com uma especial consagração, todo o nobre povo de Valência, da sua região e de toda a Espanha, e todos vós que estais reunidos neste jardim de "La Alameda". Saúdo com afecto particular, juntamente com os seus familiares, todos os ordenandos. Mas permiti-me sobretudo renovar daqui a minha mais afectuosa recordação às pessoas e famílias que nos dias passados sofreram as consequências de devastadoras inundações e perderam entes queridos. Espero que a necessária solidariedade e ajuda cristã chegue eficazmente em auxílio delas.

Este dia sacerdotal tem como quadro a cidade de Valência, de arraigadas tradições eucarísticas e sacerdotais, com a sua beleza e colorido, a sua personalidade e rica história romana, árabe e cristã, sobretudo com as suas grandes figuras sacerdotais: São Vicente Ferrer, São Tomás de Vilanova, São João de Ribera. A eles teria de acrescentar numerosos santos sacerdotes, entre eles São João de Ávila, padroeiro do clero espanhol. Todos eles acompanham-nos com a sua intercessão.

2. Em que consiste a graça do sacerdócio que hoje estes ordenandos vão receber?

Vós bem o sabeis, queridos diáconos, que vos preparastes com esmero para este momento sacramental. Conhecei-lo vós, queridos sacerdotes, que levais o jugo suave e o fardo leve (cf. Mt 11, 30) do sacerdócio. Também sabei-lo vós, cristãos de Valência e da Espanha, que acompanhais os vossos sacerdotes e com eles viveis a alegria do vosso sacerdócio comum, distinto mas não separado do sacerdócio ministerial.

Neste acto falarei principalmente aos ordenandos. Mas neles vejo a ordenação, recente ou longínqua, de cada um de vós, sacerdotes da Espanha, e exorto-vos a reviver a graça que tendes pela imposição da mãos (cf. 2 Tim 1, 6).

O sacramento da ordem está profundamente radicado no mistério da chamada que Deus faz ao homem. No escolhido realiza-se o mistério da vocação divina. A primeira leitura tomada do profeta Jeremias revela-nos isto.

Deus manifesta ao homem a sua vontade: "Antes que no seio fosses formado, eu já te conhecia; antes do teu nascimento, eu já te havia consagrado, e te havia designado profeta das nações" (Jer 1, 3).

O chamamento do homem está primeiro em Deus: na sua mente e na eleição que Deus mesmo realiza e que o homem tem que ler dentro do seu coração. Ao perceber com clareza esta vocação que vem de Deus, o homem experimenta a sensação da sua própria insuficiência. Ele trata de se defender diante da responsabilidade do chamamento. Diz como o profeta:

Ah! Senhor Javé, não sou um orador, porque sou ainda muito novo" (Jer 1, Assim, a chamada converte-se no fruto de um diálogo interior com Deus, e é às vezes como o resultado de uma contenda com Ele.

Diante das reservas e dificuldades que com razão o homem opõe. Deus indica o poder da sua graça. E com o poder desta graça o homem consegue a realização do seu chamamento: "irás aonde Eu te mandar, e dirás o que Eu te mandar. Não os temas, porque estarei contigo para te livrar... Eis que ponho as Minhas palavras nos teus lábios" (Jer 1, 7-9).

É necessário, meus queridos irmãos e amados filhos, meditar com o coração este diálogo entre Deus e o homem, para encontrar constantemente a urdidura da vossa vocação. Este diálogo já se realizou em vós que estais para receber a ordenação sacerdotal. E terá de continuar, ininterrupto, durante toda a vossa existência mediante a oração, característica da vossa piedade sacerdotal.

3. Na consciência do vosso chamamento por parte de Deus, enraiza-se ao mesmo tempo o segredo da vossa identidade sacerdotal. As palavras do profeta Jeremias sugerem essa identidade do sacerdote como chamado por uma eleição, consagrado com uma unção, enviado para uma missão. Chamado por Deus em Jesus Cristo, consagrado por Ele com a unção do seu Espírito, enviado para realizar a sua missão na Igreja.

Os ensinamentos do Magistério da Igreja a respeito do sacerdócio, inspirados na Revelação, recolhidos, por assim dizer, dos lábios de Deus, podem dissipar qualquer dúvida sobre a identidade sacerdotal.

Antes de tudo, Jesus Cristo nosso Senhor, sumo e eterno Sacerdote, é o ponto central de referência. Há um só supremo sacerdote, Jesus Cristo (cf. Lumen gentium, 28; Heb 7, 24; 8, 1) ungido e enviado ao mundo pelo Pai (cf. Presbyterorum ordinis, 2; Jo 10, 36). Deste único sacerdócio participam os Bispos e os presbíteros, cada qual na sua ordem e grau, para continuar no mundo a consagração e a missão de Cristo. Partícipes da unção sacerdotal de Cristo e da sua missão, os presbíteros actuam "in persona Christi" (Lumen gentium, 28).

Para isso recebem a unção do Espírito Santo. Sim, ides receber o Espírito de santidade, como diz a fórmula da ordenação, para que um especial carácter sagrado vos configure com Cristo sacerdote, para poderdes actuar no seu nome (cf. Presbyterorum ordinis, 2).

Consagrados por meio do ministério da Igreja, participais na sua missão salvadora como "cooperadores da ordem episcopal" e devereis estar unidos aos Bispos, segundo a formosa expressão de Santo Inácio de Antioquia, "como as cordas à lira" (Ad Ephesios, 4). Enviados a uma comunidade particular, reunireis a família de Deus, instituindo-a com a palavra, para a fazer "crescer na unidade" (Presbyterorum ordinis, 2), e "por Cristo, no Espirito levá-la a Deus Pai" (Ib., 6).

4. Chamados, consagrados, enviados. Esta tríplice dimensão explica e determina a vossa conduta e o vosso estilo de vida. Estais "colocados à parte", "segregados", mas "não separados" (Presbyterorum ordinis, 3). Assim podeis dedicar-vos plenamente à obra que vai ser confiada a vós: o serviço dos vossos irmãos.

Compreendei, pois, que a consagração que recebeis vos absorve totalmente, vos consagra de modo radical, faz de vós instrumentos vivos da acção de Cristo no mundo, prolongamento da sua missão para glória do Pai.

A isto responde a vossa consagração total ao Senhor. O dom total, que é compromisso de santidade. É a tarefa interior de "imitar o que tratais", como diz a exortação do Pontifical Romano das ordenações. É a graça e o compromisso da imitação de Cristo, para reproduzir no vosso ministério e na vossa conduta essa imagem gravada pelo fogo do Espírito. Imagem de Cristo sacerdote e vitima, de redentor crucificado.

Neste contexto de entrega total, de união a Cristo e de comunhão com a exclusiva e definitiva dedicação à obra do Pai, compreende-se a obrigação do celibato. Não é uma limitação, nem uma frustração. É a expressão de uma entrega plena, de uma consagração peculiar, de uma disponibilidade absoluta. Ao dom que Deus confere no sacerdócio, responde a entrega do eleito com todo o seu ser, com o seu coração e com o seu corpo, com o significado esponsal que tem, referido ao amor de Cristo e à entrega total à comunidade da Igreja, o celibato sacerdotal.

A alma desta entrega é o amor. Pelo celibato não se renuncia ao amor, à faculdade de viver e exprimir o amor na vida; o coração e as faculdades do sacerdote ficam impregnados do amor de Cristo, para ser entre os irmãos a testemunha de uma caridade pastoral sem fronteiras.

5. O segredo desta caridade pastoral encontra-se no diálogo que Cristo mantém com cada um dos seus eleitos, como o manteve com Pedro, segundo as palavras do Evangelho que proclamámos. E a pergunta referente ao amor especial e exclusivo para com Cristo, feita a quem recebeu uma particular missão e pôde experimentar o desencanto na sua própria debilidade humana.

O Senhor Ressuscitado não se dirige a Pedro para o advertir ou castigá-lo pela sua debilidade ou pelo pecado que cometeu ao renegá-1'O. Vem para lhe perguntar pelo seu amor. E isto é de uma enorme e eloquente importância para cada um de vós: "Amas-Me?" (Jo 21, 17). "Amas-Me ainda? Amas-Me cada vez mais? Sim. Porque o amor é sempre maior que a debilidade e que o pecado. E só ele, o amor, descobre sempre novas perspectivas de renovação interior e de união com Deus, até mesmo mediante a experiência da debilidade do pecado.

Cristo, pois, pergunta, examina a respeito do amor. E Pedro responde: "Senhor, Tu sabes tudo; Tu bem sabes que Te amo" (Jo 21, 17). Não responde: Sim, amo-Te; mas antes, confia-se ao coração do Mestre e ao seu conhecimento e diz-Lhe: "Tu sabes que Te amo".

Assim por meio deste amor, confessado três vezes, Jesus Ressuscitado confia a Pedro as suas ovelhas. E do mesmo modo confia-as a vós. E necessário que o vosso ministério sacerdotal se enraíze com vigor no amor de Jesus Cristo.

6. O amor total a Cristo e ao rebanho que Ele vos vai confiar unifica a vida do sacerdote e as diversas expressões do seu ministério (cf. Presbyterorum ordinis, 14).

Antes de tudo, configurados com o Senhor, deveis celebrar a Eucaristia, que não é um acto a mais do vosso ministério; é a raiz e a razão de ser do vosso sacerdócio. Sereis sacerdotes, principalmente, para celebrar e actualizar o sacrifício de Cristo, "sempre vivo para interceder por nós" (Heb 7, 25). Esse sacrifício, único e definitivo, renova-se e actualiza-se na Igreja de maneira sacramental, pelo ministério dos sacerdotes.

A Eucaristia converte-se assim no mistério que deve plasmar interiormente a vossa existência. Por uma parte, oferecereis sacramentalmente o Corpo e o Sangue do Senhor. Por outra, unidos a Ele — "in persona Christi" —, oferecereis as vossas pessoas e as vossas vidas, para que assumidas e como transformadas pela celebração do sacrifício eucarístico, sejam exteriormente também transfiguradas com Ele, participando das renovadoras energias da sua Ressurreição.

Será a Eucaristia vértice do vosso ministério de evangelização (cf. Presbyterorum ordinis, 4), ápice da vossa vocação orante, de glorificação de Deus e de intercessão pelo mundo. E pela comunhão eucarística há-de consumar-se dia após dia o vosso sacerdócio.

S. Vicente Ferrer, o apóstolo e taumaturgo valenciano, dizia que "a missa é o maior acto de contemplação que se possa dar". Sim, esta é a verdade. Por isso todos vós estais convidados a alimentar e vivificar a própria actividade com a "abundância da contemplação" (Lumen gentium, 41), que encontrará um inesgotável manancial na celebração da Eucaristia e dos sacramentos, na liturgia das horas, na oração mental e quotidiana, e na amorosa meditação dos mistérios de Cristo e da Virgem mediante a recitação do Rosário.

7. A consagração que ides receber habilita-vos ao serviço, ao ministério de salvação, para serdes como Cristo os "consagrados do Pai" e os "enviados ao mundo" (Jo 10 30).

Deveis dedicar-vos aos fiéis do Povo de Deus, para que também eles sejam "consagrados na verdade" (cf. Jo 17, 17). O serviço aos homens não é uma dimensão distinta do vosso sacerdócio: é a consequência da vossa consagração.

Exercei os vossos deveres ministeriais como outros tantos actos da vossa consagração, convencidos de que todos eles se resumem numa só: reunir a comunidade, que vos será confiada, no louvor de Deus Pai, por Jesus Cristo e no Espírito, para que seja a Igreja de Cristo, sacramento de salvação. Para isso evangelizareis e dedicar-vos-eis à catequese de crianças e adultos; para isso estareis disponíveis na celebração do sacramento da reconciliação; para isso visitareis os doentes e ajudareis os pobres, fazendo-vos tudo para todos a fim de a todos salvar (cf. 1 Cor 9, 22).

Não temais ser assim separados dos vossos fiéis e daqueles a quem a vossa missão vos destina. Mas antes vos separaria deles o esquecer ou descuidar o sentido da consagração que caracteriza o vosso sacerdócio. Ser um a mais, na profissão, no estilo de vida, no modo de vestir, no compromisso político, não vos ajudaria a realizar plenamente a vossa missão; enganaríeis os vossos próprios fiéis que vos querem sacerdotes por inteiro: liturgos, mestres, pastores, sem deixardes por isso de ser, como Cristo, irmãos e amigos.

Portanto, fazei da vossa total disponibilidade a Deus uma disponibilidade para os vossos fiéis. Dai-lhes o verdadeiro pão da palavra, na fidelidade à verdade de Deus e aos ensinamentos da Igreja. Facilitai-lhes quanto possível o acesso aos sacramentos, e em primeiro lugar ao sacramento da penitência, sinal e instrumento da misericórdia de Deus e da reconciliação operada por Cristo (cf. Redemptor hominis, 20), sendo vós mesmos assíduos no recebê-lo. Amai os doentes, os pobres, os marginalizados; comprometei-vos em todas as justas causas dos trabalhadores; consolai os aflitos; dai esperança aos jovens. Mostrai-vos em tudo "como ministros de Cristo" (2 Cor 6, 8).

8. Na liturgia da Palavra foram proclamadas essas conhecidas expressões da Primeira Carta de S. Pedro, dirigida aos mais anciãos, aos "presbíteros", a todos os sacerdotes aqui presentes.

Precisamente vós aqui presentes, sois os "presbíteros", os "anciãos". E os jovens que hoje receberão esta ordenação convertem-se também em "anciãos", responsáveis da comunidade.

Meditai bem o que vos é pedido por Pedro, o ancião, "testemunha dos sofrimentos de Cristo e participante da glória que há-de revelar-se" (1 Ped 5, 1). Que é que vos pede? Pede-vos que cumprais o ministério pastoral a vós confiado: "não constrangidos, mas espontaneamente; não por amor de interesse sórdido, mas com dedicação". Sim, com uma entrega generosa. E como vivos modelos do rebanho, (cf. 1 Ped 5, 3).

Eis aqui o programa apostólico da vida sacerdotal e do ministério sacerdotal que um dia Deus vos confiou. Nada perdeu ele da sua substancial actualidade. É um programa vivo, de hoje. E haveis de colocá-lo com frequência diante dos vossos olhos, na vossa alma, para ver reflectidos nele, como num espelho, a vossa própria vida e o vosso ministério.

Se assim o fizerdes, como vo-lo ensina o grande número de sacerdotes santos que na vossa Pátria foram testemunhas de Cristo, recebereis, quando aparecer "o supremo Pastor", essa "coroa imarcescível da glória" (ib., 4).

9. Meus queridos irmãos no sacerdócio: o Sucessor de Pedro que vos fala, repete-vos esta mensagem; e quereria que, no dia desta grande ordenação sacerdotal e nesta celebração da graça do sacerdócio para toda a Espanha, ela se gravasse nos vossos ânimos, no coração de cada sacerdote. Sede fiéis a esta mensagem que vem de Cristo!

Que esta celebração proporcione a toda a Igreja na Espanha uma renovação da inesgotável graça do sacerdócio católico; uma unidade maior entre todos que receberam a mesma graça do presbiterado; um considerável aumento de vocações sacerdotais entre os jovens, atraídos pelo alegre exemplo da vossa entrega e a de tantos seminaristas aqui presentes, aos quais saúdo um a um para os confirmar e animá-los na sua vocação. E ao mesmo tempo anuncio que lhes deixo uma particular mensagem escrita.

A Virgem Maria, que Valência venera com o afectuoso título de Mãe dos Abandonados, se incline com amor sobre vós e vos torne fiéis discípulos do Senhor. Acolhei-a como Mãe, tal como João a acolheu aos pés da Cruz (cf. Jo 19, 26-27). Que na graça do sacerdócio cada um de vós possa também dizer-lhe "Totus tuus".

O Senhor Ressuscitado, presente -no meio de nós, com amor olha para vós, meus caros sacerdotes e ordenandos, e repete-vos a sua pergunta sobre o vosso amor sincero e leal: "tu Me amas?". Oxalá cada um de vós possa dizer hoje e sempre: "Senhor, Tu sabes tudo; Tu bem sabes que Te amo" (Jo 21,17). Deste modo o vosso ministério será um fiel e fecundo serviço de amor na Igreja, para a salvação dos homens.

Que a recordação desta solene ordenação sacerdotal na presença do Papa, aumente a vossa fé em Jesus Cristo, sacerdote Eterno, que comunica o Seu sacerdócio para a salvação de todos os homens. Assim seja.

 



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