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CARTA DO PAPA JOÃO PAULO II
AOS MINISTROS-GERAIS DAS ORDENS FRANCISCANAS
POR OCASIÃO DO VIII CENTENÁRIO
DO NASCIMENTO DE SÃO FRANCISCO

 

 

Aos amados filhos João Vaughn, Ministro-Geral da Ordem dos Frades Menores;
Vital Bommarco, Ministro-Geral da Ordem dos Frades Menores Conventuais;
Flávio Carraro, Ministro-Geral da Ordem dos Frades Menores Capuchinhos;
Orlando Faley, Ministro-Geral da Ordem Terceira Regular de S. Francisco:
ao completar-se o 8° século a contar do nascimento de S. Francisco de Assis.

 

Dilectos filhos, Saúde e Bênção Apostólica

I

"Brilhava como estrela cintilante na escuridão da noite e quase como manhã espalhada sobre as trevas": com estas palavras anunciou Tomás de Celano São Francisco de Assis, de cuja vida foi o primeiro historiador (1). Apraz-Nos repetir este elogio, ao celebrar-se a memória do oitavo século completado a partir do nascimento deste homem ilustríssimo. Na verdade Nós, já no dia 3 de Outubro do ano de 1981, para iniciarmos o ano dedicado a celebrar a memória indicada, dirigimo-nos pelas ondas radiofónicas a muitíssimos membros das quatro Famílias Franciscanas, a religiosas e a outros, que seguem o Pai Seráfico no caminho da vida, quando celebravam sagradas vigílias na Basílica Vaticana de São Pedro, e também na mesma altura aos numerosos fiéis, reunidos na igreja catedral de Assis, sob a direcção do Bispo da mesma sé. Agora porém, quase continuando o mesmo assunto, propusemo-Nos colocar em relevo por meio desta Carta alguns pontos mais importantes do magistério evangélico, por ele apresentado, a comunicar, convosco e por meio de vós com o maior número de pessoas, a mensagem que o mesmo parece dirigir à maioria dos homens do nosso tempo.

No livro, em que estão apresentadas flores escolhidas da vida de São Francisco, o irmão Masseu, um dos seus primeiros discípulos, diz-se que uma vez lhe perguntou: "Porque é que toda a gente vem ter contigo?" (2). Decorridos oito séculos desde o nascimento do Santo de Assis, esta pergunta conserva a sua importância, há até maior razão para a fazer agora. Pois não só aumentou o número daqueles que se puseram a seguir melhor as suas pegadas, tomando a Regra por ele composta como norma da própria vida, mas também a admiração e o afecto ardente por ele — conforme costuma acontecer nas coisas humanas — longe de enfraquecerem com o decurso do tempo, mais a fundo se imprimiram nas almas e mais extensamente se propagaram; disso vêem-se os sinais impressos na espiritualidade cristã, na arte, na poesia e em quase todas as formas da cultura ocidental. A Itália, que se preza de ter dado a vida a tão grande homem, escolheu-o como seu principal Padroeiro junto de Deus, como também Santa Catarina de Sena, outra discípula sua de grande reputação. Depois a fama dele transpõe os limites da Europa, de maneira que não sem fundamento se lhe podem aplicar as palavras do Evangelho: "Onde quer que esta Boa Nova for anunciada em todo o mundo, repetir-se-á também, em sua memória, o que ele fez" (3).

Francisco, na verdade, mostra-se tal que todos concordam com ele, pois todos, os que tiverem conhecido a sua maneira de viver, aprovam unanimemente o exemplo de vida humana por ele proposto. Portanto não parece fora de propósito este ano, consagrado à sua memória, repetir com simplicidade de espírito a pergunta formulada pelo irmão Masseu: porque é que toda a gente vem ter com Francisco de Assis?

A esta pergunta pode ao menos em parte responder-se afirmando que os homens admiram este Santo e amam terem sido feitas nele — e de maneira acima de toda a comparação — aquelas coisas que mais estimam, mas que muitas vezes não podem conseguir na sua vida; são a alegria, a liberdade, a paz, a concórdia entre os homens e mesmo entre as coisas.

II

Na verdade, todas estas coisas e outras brilham com singular esplendor na vida do Pobre de Assis.

Primeiramente resplandece a alegria, pois Francisco é muito conhecido como homem inundado pela perfeita alegria Em toda a sua vida "teve o mais alto e perfeito empenho... em estar sempre solicito interiormente e em ter (e) conservar em si exteriormente a alegria espiritual" (4).

Muitas vezes, como dizem os documentos históricos, não pôde dominar o ardor da alegria, que o solicitava interiormente de modo que, à maneira de um cantor errante, imitando com pedaços de madeira os tocadores do instrumento musical chamado "viela" cantava os louvores de Deus em francês (5). A alegria, de que estava cheio Francisco, veio da admiração com que, devido à simplicidade e inocência da sua alma, contemplava todas as coisas e os acontecimentos; mas derivou sobretudo da esperança, que alimentava no coração e o levava a exclamar: "Tão grande é o bem que espero, que toda a pena me deleita" (6).

Embora quase nunca usasse a palavra liberdade, a sua vida inteira foi deveras uma singular mostra da liberdade evangélica De todo o seu modo de proceder e de toda a sua iniciativa transpareciam a interior liberdade de espírito e o espontâneo hábito da mente, que fez da caridade a lei suprema e o instrumento de plena adesão a Deus Uma das numerosas provas deste proceder é a liberdade que, de acordo com o Evangelho, concedeu aos seus irmãos, de comerem de todos os alimentos que lhes fossem apresentados (7)

A liberdade, porém, que Francisco seguiu e louvou de maneira nenhuma se opõe à obediência à Igreja e mesmo "a todos os homens, que estão no mundo" (8), mas, pelo contrário, desta mesma procede. Pois aquela forma perfeita e original do homem, em virtude da qual é livre e senhor do universo, brilha nele com luz especial (9). Nisto também se encerrara aquela singular familiaridade e docilidade, que todas as criaturas mostravam a este Pobre de Cristo. Dai resultou escutarem os pássaros a sua pregação sagrada (10), tornar-se manso — segundo a conhecida narração — o lobo (11), e até o fogo, mitigando os seus ardores, tornar-se "curial", quer dizer afável (12). E assim, como o citado primeiro historiador da sua vida afirma, "percorrendo o caminho da obediência e abraçando perfeitamente o jugo da divina sujeição, na obediência das criaturas conseguiu diante de Deus grande dignidade" (13) Mas a liberdade de São Francisco provém sobretudo da pobreza voluntária, com que se eximia de toda a cobiça terrena e de toda a solicitude, de maneira que se tornou um daqueles homens que, segundo as palavras do Apóstolo, "nada tendo, tudo possuem" (14).

Francisco, além de ser homem insigne por perfeita alegria e por liberdade, não deixa de ser venerado como suavíssimo amante da paz e da fraternidade universal. Mas a paz, que Francisco gozava e distribuía, vem de Deus como de fonte, a quem ele se dirigiu com estas palavras: "Tu és a mansidão, tu és a segurança e tu és o sossego" (15) Esta paz reveste forma humana e energia em Cristo Jesus, que é "a nossa paz" (16): n'Ele, como escreveu Francisco seguindo São Paulo, "as coisas que estão nos céus e as que estão na terra foram pacificadas e foram reconciliadas com Deus omnipotente" (17). "O Senhor te dê a paz": com estas palavras, ensinado por divina revelação, saudou todos os homens (18). Foi verdadeiramente "pacífico" (19) ou conciliador e autor da paz — homem daqueles que são chamados felizes no Evangelho — porque todo o assunto das suas palavras tendia a extinguir inimizades e a reformar os compromissos de paz" (20). Chamou à paz e à concórdia as classes de cidadãos da mesma cidade, que lutavam entre si até ao sangue, pondo em fuga com as suas preces os demónios, fautores de discórdia (21). Entre as cidades separadas pela discórdia, entre o clero e o povo, e ainda, segundo se diz, entre os homens e os animais, estabeleceu a paz. Todavia a paz, segundo a persuasão de Francisco, consegue-se dando o perdão; por isso, para levar a que iniciassem a paz o governador da cidade de Assis e o bispo da mesma sé, que entre si questionavam, mandou juntar ao cântico do irmão sol estas palavras bem conhecidas: "Sejas louvado, meu Senhor, por causa daqueles que perdoam devido ao amor por ti" (22).

Francisco não julgava ninguém inimigo, mas considerava cada um seu irmão. Por isso, todas as barreiras, devido às quais os homens daqueles tempos estavam separados entre si, aconteceu que as ultrapassasse e que anunciasse o amor de Cristo aos próprios Sarracenos, lançando nas almas como que sementes da vontade de quem estava inclinado a tratar, e a estabelecer o ecumenismo entre homens diferenciados por cultura, por linhagem e por religião, que são das coisas mais importantes, no sentido das quais a nossa época progrediu. E, além disso, ampliou este sentimento de fraternidade universal até todas as coisas criadas, mesmo inanimadas: o sol, a lua, a água, o vento, o fogo e a terra, as quais, segundo os géneros de cada uma, chamou irmãos e irmãs, e amou com certa reverência suave (23). A respeito disto, assim encontramos escrito sobre ele: "Abrange todas as coisas com afecto de inaudita dedicação, falando-lhes do Senhor e exortando-as a louvá-1'O" (24). Considerando estas coisas com o espírito e desejando satisfazer os desejos daqueles que hoje com razão têm a solicitude das coisas da natureza, nas quais os homens vivem, com a Carta Apostólica do dia 29 de Novembro de 1979, autenticada com o anel do Pescador, declarámos São Francisco de Assis celestial Padroeiro de todos os cultores de ecologia (25). Todavia o exemplo de Francisco neste assunto constitui ao mesmo tempo certíssima prova de as criaturas e os elementos não se isentarem de injusta e prejudicial violação, a não ser que, brilhando a luz bíblica da criação e da redenção, sejam vistas como criaturas, a respeito das quais o homem tem deveres, não sendo entregues ao seu arbítrio, mas que juntamente com ele esperam e desejam "ser libertadas da servidão da corrupção para participarem livremente da glória dos filhos de Deus" (26).

III

Até agora tratámos dos pontos, devido aos quais o género humano se gloria com razão de Francisco de Assis nem se cansa de o admirar, isto é, da alegria, da liberdade, da paz e da fraternidade universal. Se nos detivéssemos nisto apenas, tratar-se-ia de uma admiração vã, que teria pouco ou nenhum valor para ensinar aos homens, nossos contemporâneos, sobre o modo de conseguir os mesmos bens que foram indicados mais acima; seria precisamente a mesma coisa que desejar recolher frutos, não fazendo caso do tronco e da raiz da árvore.

Portanto, a fim de que a celebração da memória do oitavo século, terminado a contar do nascimento de São Francisco, desperte verdadeiramente as consciências e nelas, por assim dizer, imprima vestígios, é necessário procurar as raízes para se conhecer como a vida do seráfico varão conseguiu produzir tão admiráveis frutos. Na verdade, a paz, a alegria, a liberdade e o amor não foram ao acaso dados a Francisco pela sorte ou pela natureza e lhe adornaram a alma, mas sim pelo propósito feito e pelo caminho austeríssimo, que ele resume com estas palavras "fazer penitência", como no princípio do seu Testamento escreveu: "O Senhor assim me concedeu a mim, irmão Francisco, começar a fazer penitência: estando em pecados, afigurava-se-me demasiado amargo ver leprosos Mas o próprio Senhor levou-me para o meio deles e usei de misericórdia com os mesmos. Ao apartar-me, o que me parecera amargo, transformou-se para mim em doçura da alma e do corpo; e em seguida parei algum tempo e saí do século" (27).

"Fazer penitência" ou "viver na penitência": multiplicam-se sobretudo estas palavras nos escritos de São Francisco, pois resumem muito bem toda a sua vida e a sagrada pregação. Tratando-se de ordenar rectamente a vida nova — sem dúvida num tempo de grande responsabilidade — ele, pedindo conselho a Cristo, abriu o livro do Evangelho e encontrou nele expressa a seguinte resposta do Senhor, com a qual depois se conformou até à morte: "Se alguém quer vir após Mim, negue-se a si mesmo" (28). Na verdade, a abnegação de si mesmo foi o caminho, pelo qual Francisco encontrou a sua "alma" ou vida (29). Conseguiu a alegria sofrendo trabalhos, a liberdade obedecendo e negando-se completamente a si mesmo, o amor para com todas as criaturas porque se odiava a si mesmo, isto é, como ensina o Evangelho, porque venceu o amor de si mesmo. Uma vez caminhando, explicou a frei Leão que a verdadeira alegria está em sofrer qualquer aspereza e tribulação por amor de Cristo (30).

"Viver na penitência", segundo São Francisco, vale o mesmo que reconhecer o pecado em toda a sua gravidade: manter-se constantemente diante de Deus na penitência; e transferir para a prática da vida com austero esforço ascético o sentimento de corrupção e de dor. Nisto progrediu ele tanto que, antes de morrer, quase pediu perdão, confessou "ter pecado muito contra o irmão corpo", por o ter afligido em vida com tanto emagrecimento (31).

Este caminho, que Francisco seguiu, chama-se com brevidade na linguagem cristã cruz. Ele foi e ainda agora é arauto e mensageiro, por meio do qual a Igreja é levada com a maior firmeza para os primários frutos que obtém a pregação da cruz, como se Deus por meio do Seu pobre servo Francisco quisesse plantar de novo a árvore da vida "no meio da cidade" (32), isto é, no meio da Igreja. Por isso, este ano, dedicado à memória do mesmo Santo, indo Nós em peregrinação ao seu sepulcro, dirigimos-lhe a seguinte oração: "O oculto fundamento das tuas riquezas espirituais estava depositado na cruz de Cristo... ensina-nos, como o apóstolo Paulo o ensinou a ti, que esteja longe de nós gloriarmo-nos a não ser na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo" (33)

Cristo crucificado foi o guia do caminho para Francisco desde o princípio da sua vida até ao fim; e até no monte Alverne lhe imprimiu exteriormente os sagrados estigmas, de maneira que ele, também diante dos olhos dos homens, "foi visto como crucificado" (34). Francisco reproduziu completamente e conformou-se com o modelo do Crucificado; e a causa mais importante por que se deu à suma pobreza foi o seguimento de Cristo. Estando já perto da morte, resumiu a sua singular experiência espiritual nestas simples e altíssimas palavras: "conheço Cristo pobre crucificado" (35). Na verdade, desde que se converteu a Deus, viveu continuamente como quem está marcado pelos estigmas de Cristo.

Voltemos portanto à pergunta feita no princípio: "Porque é que toda a gente vem ter contigo?". Já está claramente declarada a resposta, encerrada nestas palavras de Jesus Cristo: "Eu, quando for levantado da terra atrairei todos a Mim" (36). Realmente, todos os homens são atraídos para Francisco de Assis, porque ele, seguindo o seu Mestre divino, quis de algum modo "ser levantado da terra", isto é, ser crucificado, de maneira que já não vivesse ele, mas Cristo nele, se é licito transferir para o mesmo as palavras do Apóstolo (37).

Os homens do nosso tempo esforçam-se com todas as energias por suprimir a dor, mas de nenhum modo o podem conseguir; pelo contrário são com tanta maior veemência crucificados por angústias, quanto mais activamente se esforçam por levar a que desapareçam as principais, segundo julgam, causas de dor. Mas São Francisco, usando poucas palavras, mas recomendado pela imensa autoridade da sua vida, aponta para a vida cristã, que a isso leva. Trata-se, numa palavra, de levar a que desapareça a causa última da dor e da injustiça, que é o pecado, sobretudo o pecado do amor desordenado de si mesmo. Se, por assim dizer, crucifica o amor próprio, o homem vence aquele egoísmo, em virtude do qual pensa em si só, não fazendo caso dos outros e ocupando-se unicamente da sua própria utilidade. E, por assim dizer, quebra a roda férrea da velhice e da morte, entrando num novo círculo, no meio do qual está Deus e em cuja área se encontram incluídos todos os irmãos; torna-se, numa palavra, "nova criatura em Cristo" (38).

Tomando isto em conta, o ano dedicado à memória do nascimento de São Francisco, que se aproxima do fim, parece ser providencial preparação do Sínodo dos Bispos, que irá celebrar-se em 1983, no qual foi proposto o seguinte argumento: "Sobre a reconciliação e a penitência na missão da Igreja". O Santo, que experimentou a singular fecundidade do propósito feito de "fazer penitência", nos consiga também a nós, cristãos destes tempos, o dom de compreender com o espírito a verdade, graças à qual não nos podemos tornar homens novos — que beneficiem de alegria, liberdade e paz — a não ser que humildemente reconheçamos o pecado que está em nós, a não ser que nos purifiquemos no banho da verdadeira penitência e depois "produza os frutos de sincero arrependimento" (39).

IV

Esta carta, com que nos ocupamos do oitavo século decorrido a partir do nascimento de São Francisco, não queremos terminá-la sem falar do especial respeito do mesmo Santo para com a Igreja e dos vínculos de dedicação e amizade, pelos quais, à maneira de filho estava unido com os Romanos Pontífices do seu tempo.

Persuadido como estava, de aquele que não "junta" com a Igreja, "dispersa" (40), o homem de Deus desde o começo teve a peito que a sua obra fosse confirmada e defendida com a aprovação e defesa "da Santa Igreja Romana". Tal propósito declarou-o com estas palavras na sua Regra: "para que — sempre súbditos e sujeitos aos pés da mesma santa Igreja, estáveis na fé (cf. Col 1, 23) católica — observemos a pobreza e a humildade e o santo evangelho do Senhor nosso Jesus Cristo, como firmemente prometemos" (41). •

O primeiro historiador da sua vida afirma dele: "Pensava que, entre todas as coisas e acima delas, havia de guardar-se, venerar-se e imitar-se a fé da santa Igreja Romana, na qual unicamente está a salvação de todos os que se hão-de salvar. Venerava os sacerdotes e abrangia com o maior afecto toda a classe eclesiástica" (42).

E a Igreja pagou a confiança em si depositada pelo Pobre de Cristo não só aprovando a sua Regra, mas também dedicando-lhe especial honra e benevolência. Falámos deste amor de Francisco para com a Igreja, quando no princípio do ano, notabilizado pela memória do Santo, publicámos a referida mensagem, dizendo entre outras coisas o seguinte: "o carisma e o dom profético do irmão Francisco levavam a que se mostrasse de. maneira expressa que o Evangelho foi entregue à Igreja, que se há-de viver dele e se deve ele aplicar sobretudo na prática da vida de cada dia e tem de servir de exemplo à Igreja, com a concordância e o apoio da mesma Igreja" (43).

Porém as condições da vida, que a Igreja agora atravessa, parecem insinuar que se examine mais diligentemente como São Francisco teve naqueles tempos parte activa nas coisas da Igreja. Esses tempos eram notáveis e excepcionais pois se propunha com grande esforço a renovação litúrgica e moral da própria Igreja; tal esforço chegou ao cume com o IV Concilio Ecuménico Lateranense, celebrado no ano de 1240. Ainda que não conste ao certo que Francisco tenha participado nas sessões do mesmo Concílio universal, não há todavia nenhuma dúvida que teve perfeito conhecimento dos excelentes propósitos e das consultas do Concílio, e que ele e a Ordem que fundara prestaram notáveis serviços para que fosse aplicada a renovação, delineada pelo Concilio. Sem dúvida aos cânones do mesmo Concílio universal e à carta do Papa Honório III se refere manifestamente aquela piedosa discussão, relativa à Eucaristia, com a qual o Santo de Assis se esforçou para que aumentasse o decoro nas igrejas, nos tabernáculos e nos vasos sagrados, mas sobretudo para que se revigorasse o amor para com o santíssimo Corpo e Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo (44).

Além disso, Francisco abraçou a resolução de renovar a penitência, que o Papa Inocêncio III propôs, ao dirigir-se aos presentes na inauguração do Concílio Lateranense. Em tal discurso aquele Sumo Pontífice, notabilíssimo Predecessor Nosso, exortou todos os cristãos, sobretudo os clérigos, a introduzirem a renovação espiritual, a conversão para Deus e a emenda dos costumes; e usando as palavras proféticas do capítulo IX de Ezequiel, afirmou que a letra Tau (última letra do alfabeto hebraico, que apresenta e forma de cruz) é o sinal daqueles que "crucificaram a carne com as suas paixões e apetites" (45), e gemem e sofrem com se apartarem os homens de Deus: "Traz este sinal na fronte aquele que mostra na prática o valor da cruz" (46).

Dos lábios do Romano Pontífice recolheu São Francisco e aplicou a si este impulso à purificação e renovação que se devia operar na Igreja. Na verdade a partir daquele dia — como foi relatado — teve em honra especial o sinal Tau; escreveu-o à mão no fim das próprias cartinhas — como no bilhete dirigido ao frei Leão —, gravou-o nas celas dos frades e recomendou-o nas suas exortações, "como se — conforme diz São Boaventura — todo o seu empenho fosse, segundo a expressão profética, marcar um Tau nas frontes dos que gemem e sofrem, verdadeiramente convertidos a Cristo Jesus" (47).

Estas e outras coisas mostram que Francisco se propôs que a sua obra servisse humildemente às resoluções de renovação espiritual, que tinha decidido a Hierarquia. Para que se aplicassem contribuiu ele com a sua santidade, que foi ajuda a que nenhuma coisa se podia substituir. Como antes se tivesse disposto completamente a obedecer ao Espírito Santo, porque se tornava semelhante a Cristo Crucificado, quase se tornou instrumento, de que usou o próprio Espírito Santo para renovar ulteriormente a Igreja e para que ela fosse "santa e imaculada" (48). O homem de Deus, movido "por divina inspiração" — como ele próprio costumava afirmar —, isto é impelido pelo fervor do Espírito Santo, fez tudo isto; em tudo procurou "o Espírito e a vida" (49), palavras de São João que estimava repetir. Daqui brotou, de facto, admirável força renovadora, que estava presente na sua pessoa e vida (50). Assim se tornou ele verdadeiro promotor da renovação da Igreja, não pela repreensão e censura, mas pela santidade.

A época, que a Igreja atravessa agora, por alguns motivos é semelhante ao século em que viveu São Francisco. O Concílio Ecuménico Vaticano II publicou muitos decretos e conselhos para renovar a vida cristã. Todavia, como escrevemos há pouco na Carta ao decorrerem 1600 anos a contar do I Concílio de Constantinopla e 1550 anos do Concílio de Éfeso, "toda a obra da Igreja, que tão providencialmente persuadiu e começou o Concílio Vaticano II... não se pode realizar senão no Espírito Santo, isto é graças à Sua luz e à Sua força" (51). Mas esta acção do Espírito Santo, que tem enorme importância, não se realiza ordinariamente senão por homens, em cujos ânimos o Espírito de Cristo tenha plenamente descido, homens que se tenham tornado como instrumentos d'Ele, de maneira que O possam transfundir, embora de modos diferentes, nos irmãos.

Assim a memória do nascimento de São Francisco, que este ano celebramos com solenidades, parece-Nos, atendendo às ideias acima expostas, uma singular graça concedida por Deus à Igreja precisamente nestes tempos. Com este dom, sobretudo o movimento dos fiéis e as energias novas, que hoje Deus suscita, são advertidos a que, esforçando-se activamente dentro da Igreja, tudo façam — como Francisco — para deixarem de insistir nos próprios e peculiares projectos de renovação, mas para fazerem servir com humildade o carisma, a si dado, às determinações tomadas pela Igreja no Concílio Vaticano II. Hoje, como nos tempos de São Francisco, são necessários homens, que tenham chegado à novidade de vida pela comunhão nos sofrimentos de Cristo (52) e dos quais o Espírito possa usar livremente para edificar o Reino. Não acontecendo assim, há perigo de as prescrições e as normas directivas, ainda que óptimas, do mesmo Concílio universal ficarem ineficazes ou pelo menos não produzirem aqueles frutos que se esperam para bem da Igreja.

Esta exortação dirige-a a Igreja a todos os seus filhos, sobretudo àqueles que, oferecendo-se esta ocasião, resolveram seguir mais de perto as pegadas do Pobre de Assis na variedade das Ordens e dos Institutos, que o têm como fundador ou se esforçam por seguir a sua maravilhosa forma de vida. A Igreja espera que eles, inflamados pelo novo ardor dos espíritos, com a sua santidade contribuam para o progresso da mesma, de maneira que de algum modo seja ressuscitado aquele grande dom que foi comunicado ao mundo no passado, por meio de São Francisco de Assis.

Baseado nesta esperança, a vós, dilectos filhos, e às Famílias religiosas que dirigis, como também às monjas e às religiosas franciscanas, e a todos os membros da Ordem Terceira do mesmo São Francisco, de todo o coração concedemos a Bênção Apostólica, como penhor de celestiais graças e testemunho do Nosso amor.

Dado em Roma, junto de São Pedro, no dia 15 do mês de Agosto, na solenidade da Assunção da Bem-aventurada Virgem Maria, no ano de 1982, quarto do Nosso Pontificado.

 

JOHANNES PAULUS PP. II


Notas

1) Vita prima Sancti Francisci, n. 37: Analecta Franciscana, 10, Ad Claras Aquas 1926-1941, p. 29.

2) Cf. Actus beati Francisci et sociorum eius. ed. P. Sabatier, Paris 1902, 10, p. 40; cf. também 1 Fioretti di San Francesco, ed. B. Bughetti, Firenze 1926, 10, p. 55 s.

3) Cf. Mt 26, 13.

4) "Legenda antiqua S. Francisci". Texte du Ms. 1046 (M. 69) de Pérousc, édité par le P. P.-M. Delorme, Paris 1926, n. 97, p. 56; cf. também Compilatio Assisiensis, preparada por M. Bigaroni, Porziuncola 1975, n. 120, p. 384; Scripta Leonis, Rufini et Angeli sociorum S. Francisci, ed. R. B. Brooke, Oxford 1970; n. 97, p. 260.

5) Cf. Thomae de Celano, Vita secunda S. Francisci, n. 127: Analecta Franciscana, p. 205.

6) "E como tema propôs isto em língua vulgar: "Tanto è il bene ch'io aspetto, chogni pena m'i diletto". O sentido é: Tão grande é o bem que espero, que toda a pena me deleita: Actus beati Francisci et sociorum eius, 9, p. 31; cf. De conformitate vitae beati Francisci ad vitam Domini lesu, auctore Fr. Bartholomaeo de Pisa: Analecta Franciscana 1, 479; Considerazioni sulle stimmate, I: Fonti Francescane, Assisi 1977, n. 1897.

7) Regula bullata 3, 14: "E segundo o santo Evangelho, de todos os alimentos, que lhes são servidos, seja lícito comer (cf. Lc 10, 8)".

Cf. Opuscula Sancti Patris Francisci Assisiensis (Bibl. Franc. Ascética Medii Aevi, 12), ed. K. Esser, Grottaferrata 1978, p. 230.

8) Salutatio Virtutum, 14-16: Opuscula Sancti Patris Francisci Assisiensis, 303. Cf. Fonti Francescane, n. 258; 1 Ped. 2, 13.

9) Cf. Gén 1, 28; Sab 9, 2-3.

10) Cf. Thomae de Celano, Vita prima S. Francisci, n. 58: Analecta Franciscana, 10, 44 s.; Fonti Francescane, n. 424.

11) Cf. Actus beati Francisci et sociorum eius, 23, pp. 77-81: De lupo ferocissimo per sanctum Franciscum reducto ad inagnam mansuetudinem; I Fioretti di San Francesco, 21: Fonti Francescane, n. 1852.

12) Thomae de Celano, Vita secunda S. Francisci, n. 61: Analecta Franciscana, 10, 47; cf. ibid. n. 166, 227: "... Irmão meu fogo... sê-me nesta hora propício, sê-me afável!"

13) Thomae de Celano, Vita prima S. Francisci, n. 61: Analecta Franciscana, 10, 47.

14) 2 Cor 6, 10.

15) Laudes Dei Altissimi, 4: Opuscula Sancti Patris Francisci Assisiensis, 90.

16) Ef 2, 14.

17) Epistola toti Ordini missa, 13: Opuscula Sancti Patris Francisci, 140; cf. Col 1, 20.

18) Testamentum, 23: "O Senhor revelou-me a saudação, para que disséssemos: Dê-te o Senhor a paz": Opuscula Sancti Patris Francisci Assisiensis, 311 s.

19) Mt 5, 9.

20) Thomas de Spalato, Historia Pontificam Salonitarum et Spalatensium, ed. Heinemann: Monumenta Germaniae istorica Scriptores. XXIX, p. 580. Cf. Testimonia minora saeculi XIII de S. Francisco Assisiensi, ed. H. Boehmer-F. Wiegand-C. Andresen, Tiibingen 1961, p. 72; Fonti Francescane, n. 2252.

21) Cf. Thomae de Celano, Vita secunda S. Francisci, n. 108: Analecta Franciscana, 10, p. 194.

22) Opuscula Sancti Patris Francisci Assisiensis, 88. Cf. Mt 6, 12. O Cântico do irmão sol foi composto em língua vulgar; cf. Legenda antiqua S. Francisci (Legenda Perusina), ed. P. F.-M. Delorme, 44, p. 27; Scripta Leonis, Rufini et Angeli sociorum S. Francisci, ed. R. B. Brooke, p. 168; Fonti Francescane, n. 1593.

23) Cf. Thomae de Celano, Vita prima S. Francisci, nn. 77.80, 81: Analecta Franciscana, 10, 57.60.

24) Thomae de Celano, Vita Secunda S. Francisci, n. 165: Analecta Franciscana, 10, 226.

25) Cf. AAS 71, 1979, p. 1509.

26) Cf. Rom 8, 21.

27) Testamentum, 1-3: Opuscula Sancti Patris Francisci Assisiensis, 307 s.

28) Cf. Thomae de Celano, Vita secunda S. Francisci, n. 15: Analecta Franciscana, 10, p. 140; Mt 16, 24; Lc 9, 23.

29) Cf. Mt 10, 39.

30) Cf. De vera et perfecta laetitia, 15: Opuscula Sancti Patris Francisci Assisiensis, 324-326. Cf. também S. Francisci Admonitio, 5, 8: ibid., 67; I Fioretti, 8: Fonti Francescane, n. 1836.

31) Cf. Legenda trium Sociorum, n. 14, ed. T. Desbonnet; Archiv. Franc. Hist. 67, 1974, 100.

32) Cf. Apoc 22, 21.

33) Cf. o diário L'Osservatore Romano, 13 de Março de 1982.

34) Cf. Gál 3, 1. Cf. também Thomae de Celano, Vita prima S. Francisci, n. 112: Analecta Franciscana, 10, 88: "Ressaltava verdadeiramente nele a forma da cruz e da paixão do Cordeiro imaculado, que lavou os crimes do mundo, parecendo como que pouco antes descido da cruz, tendo as mãos e os pés trespassados pelos cravos, e o lado direito como que ferido pela lança".

35) Thomae de Celano, Vita secunda S. Francisci, n. 112: Analecta Franciscana, 10, p. 192.

36) Jo 12, 32.

37) Cf. Gál 2, 20.

38) Cf. 2 Cor 5, 17.

39) Cf. Lc 3, 8.

40) Cf. Lc II, 23.

41) Regula bullata, 12, 4: Opuscula Sancti Patris Francisci Assisiensis, 237.

42) Thomae de Celano, Vita prima S. Francisci, n. 62: Analecta Franciscana, 10, 48.

43) Cf. AAS 73, 1981, p. 731 (3 de Outubro de 1981).

44) Cf. Concilium Lateranense IV, cann. 19-20: Conciliorum Oecumenicorum Decreta, curantibus G. Alberigo et aliis, Bolonha 1973, p. 244; cf. etiam Litt. Ap. Honorii PP. III Sane cum olim, 22 de Novembro de 1219: Bullarium Romanum III, Augustae Taurinorum 1858, p. 66 et Epistula S. Francisci ad Clericos De reverentia corporis Domini: Opuscula Sancti Patris Francisci Assisiensis, pp. 96, s.

45) Gál 5, 24.

46) D. Mansi, Sacrorum Conciliorum nova et amplíssima collectio, 22, Venetiis 1778, p. 971; cf. PL 217, 677.

47) Legenda minor, 2, 9: Analecta Franciscana, 10, p. 662; cf. do mesmo autor Legenda maior, Prologus, 2: ibid., p. 558.

48) Ef 5, 27.

49) Regula bullata, 12, 1; Regula non bullata 2, 1: Opuscula Sancti Patris Francisci Assisiensis, pp. 237; 243. Cf. também S. Bonaventura, Legenda maior, 10, 2: Analecta Franciscana, 10, p. 602.

50) Cf. Testamentum, 13; Epistola ad Fideles (recensio prior), 2, 22; Epistola ad Fideles (recensio posterior), 20: Opuscula Sancti Patris Francisci Assisiensis, pp. 309, s.; 112; 118.

51) Epistula A Concilio costantinopolitano, 25 de Março de 1981: AAS 73, 1981, p. 521.

52) Cf. Fil 3, 10.

 

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