Index   Back Top Print

[ ES  - IT  - PT ]

VIAGEM APOSTÓLICA DO SANTO PADRE AO BRASIL
(30 DE JUNHO - 12 DE JULHO DE 1980)

DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II
POR OCASIÃO DO ENCONTRO COM OS RELIGIOSOS

São Paulo, 3 de Julho de 1980

 

Queridos filhos chamados por Deus
 a uma especial consagração na Vida Religiosa

Aquele que experimenta neste momento de sua peregrinação pelo Brasil a sincera alegria de um encontro convosco é o mesmo que, Arcebispo de Cracóvia, procurava todas as ocasiões para encontrar os religiosos e religiosas de sua diocese e, Bispo de Roma, procura estar com eles quer recebendo-os em sua casa quer indo ao encontro nas visitas pastorais às Paróquias romanas. Faço-o por um duplo imperativo: porque convencido da eficácia dos religiosos na vida e na ação pastoral da Igreja em todos os seus níveis e porque profundamente consciente do valor inestimável da vida religiosa em si mesma.

1. Os religiosos na pastoral da Igreja

Que dizer a vós religiosos brasileiros – brasileiros por nascimento ou por adopção – da presença dos religiosos na acção pastoral da Igreja? Preparando-me interiormente para esta visita, debrucei-me com carinhosa atenção sobre a história da Igreja neste País e foi para mimo uma revelação descobrir quanto esta se acha, em toda sua extensão, vinculada – às vezes se diria identificada – com a incansável actividade missionária de um sem-número de religiosos de várias famílias. Religiosos são os primeiros apóstolos da terra apenas descoberta e podemos citar em homenagem a todos eles um dos maiores entre eles: aquele admirável José de Anchieta cuja beatificação realizei com íntima e particular satisfação há menos de duas semanas. Religiosos foram a maioria dos sacerdotes consagrados à evangelização dos índios, à sua educação no pleno respeito à sua identidade e, cada vez que necessário, à sua defesa mesmo com sacrifício pessoal.

Religiosos formam ainda hoje pouco mais da metade do clero brasileiro. E não sei de outro País que possa mencionar 193 religiosos entre os seus 343 bispos, entre os quais dois Cardeais da Santa Igreja, segundo estatística de 31-12-1979.

Que dizer-vos mais? Vossa presença é para a Igreja no Brasil, não um supérfluo facilmente dispensável, mas uma necessidade vital. Alguns pontos tornarão essa presença sempre mais eficaz:

– primeiro, que os religiosos sacerdotes se mostrem capazes de um leal e desinteressado entrosamento com os sacerdotes diocesanos cujas tarefas são chamados a partilhar não a título de excepção, mas de modo habitual;

– segundo, que os religiosos leigos aprendam sempre mais a inserir as próprias obras num plano de conjunto que é aquele de toda a Igreja, em nível quer diocesano, quer nacional;

– terceiro, que no espírito do documento “Mutuae Relationes”, os Superiores religiosos procurem, aceitem, cultivem diálogo franco e filial com os Pastores postos pelo Espírito de Deus para governar a sua Igreja. Neste sentido nunca se salientará demais a importância das relações entre a Conferência Nacional dos Bispos a quem compete elaborar e estabelecer os planos de pastoral para o País e a Conferência dos Religiosos que assume a tarefa de promover a vida velando para que esta se mantenha fiel às suas raízes mais profundas e ao carisma que a caracteriza.

2. A identidade da vida religiosa

E aqui tocamos no segundo aspecto: a identidade profunda da vida religiosa. Não é por ser útil à Pastoral que a Vida Religiosa tem um lugar definido na Igreja e um valor incontestável. O contrário é que é verdade: ela presta um serviço eficaz à pastoral porque e enquanto se mantém inabalavelmente fiel ao lugar que ocupa na Igreja e aos carismas que definem este lugar.

Impossível tentar aqui até mesmo um resumo de teologia da vida religiosa. Mas não será demais, quase como lembrança viva deste encontro com o Papa, recordar alguns aspectos.

O primeiro, que encontra o consenso universal e não é sequer objecto de debates, é que quando falamos de vida religiosa nos referimos a algo de muito preciso na experiência da Igreja ao menos no que concerne aos elementos essenciais.

Cada cristão tem a plena e legítima liberdade, segundo a própria consciência, de entrar ou não na vida religiosa. Mas não lhe cabe definir ou redimensionar, prescindindo da vida, da história e, repito, da bimilenar experiência da Igreja, o que é essencial na vida religiosa.

Este essencial foi há pouco tempo reafirmado pelo Concílio e por documentos consagrados à sua autêntica interpretação nesta matéria. Conheceis bem este essencial:

1) A vida religiosa é uma “schola dominici servitii”, segundo a bela fórmula de São Bento (S. Benedicti, Regula, Prol. 45), um aplicado, amoroso, perseverante aprendizado de quem só pretende uma coisa na vida: servir ao Senhor. Na perspectiva deste serviço se alinham todas as outras dimensões da vida religiosa tais como as sublinha o Concílio Vaticano II.

2) A vida religiosa, ensina o Concílio, não se coloca na Igreja no plano das estruturas institucionais (não é um grau hierárquico nem se acrescenta como um terceiro elemento entre os Pastores e os Leigos) mas na linha dos carismas e mais exactamente no dinamismo daquela santidade que é a vocação primordial da Igreja. A razão primeira pela qual um cristão se fez religioso não é para assumir na Igreja um posto, uma responsabilidade ou uma tarefa, mas para santificar-se. Esta é sua tarefa e sua responsabilidade, “o resto lhe será dado por acréscimo”. Este é seu serviço à Igreja: ela precisa desta escola de santidade para realizar concretamente sua própria vocação de santidade.

3) Se o testemunho que se espera do leigo é o da secularidade, da acção nas realidades temporais, o testemunho co-natural à vida religiosa em geral e a cada religioso em particular é o das bem-aventuranças vividas no quotidiano; o do Absoluto de Deus diante do qual tudo o mais, mesmo os mais importantes empenhos temporais, se tornam visceralmente relativos; é por conseguinte o testemunho do invisível e finalmente o da Parusia a ser vivida em esperança já nesta vida.

4) Para tudo isso revela-se importante na vida religiosa a consagração total que cada religioso fez de si mesmo a Deus pelos votos que actualizam na vida dele os conselhos evangélicos. Esta consagração total significará para ele a libertação mais profunda e genuína, mais plena, que o levará a maior comunhão com Deus e com os irmãos, maior participação na vida divina e na comunidade dos homens, a começar pela comunidade dos que com ele procura a Face de Deus.

Esta consagração total traz consigo, como consequência, uma disponibilidade total. A Igreja sempre experimentou, no curve de sua história, que podia contar com os religiosos para as mais delicadas missões.

5) De tudo o que precede decorre que um religioso não poderia não ser um homem de oração, um grande orante. Isto vale para os contemplativos, mas vale também para qualquer religioso.

À luz desse essencial, e aplicando concretamente alguns de seus aspectos, quero dizer-lhes, amados irmãos e filhos, umas poucas palavras de alento e de estímulo para vós.

Em primeiro lugar recordo que a Igreja em vários documentos recentes falou da renovação da vida religiosa. Creio supérfluo frisar que, para ser sadia e corresponder ao pensamento da Igreja e portento ao desígnio de Deus, essa renovação não pode absolutizar-se tornando-se finalidade de si mesma e prescindindo dos critérios válidos. Dois critérios, entre outros, aparecem como os mais importantes: o primeiro é que a vida religiosa (e concretamente cada comunidade religiosa) não se renova de verdade se o escopo da renovação é na prática a procura do mais fácil e mais cómodo, mas somente se esse escopo é a busca do mais autêntico e do mais coerente com as finalidades da mesma vida religiosa; o segundo critério é que a vida religiosa se renova para se tornar mais ainda caminho de santidade. Aqui se aplica de modo particularmente palpável a sentença do Senhor, de que “pelos frutos se conhece a árvore”. No que depende de nós teremos de fazer tudo para que não se possa dizer que a renovação da vida religiosa conduziu ao seu relaxamento e finalmente à sua dissolução.

A luz desses critérios, devo dizer-vos: realizai com humildade a desejada renovação da vida religiosa. Ela merece os mais sérios esforços das famílias religiosas e das Conferências de religiosos de todos os níveis.

Em segundo lugar gostaria de assinalar a originalidade da presença do religioso no mundo. Já alguma vez se esquematizou assim este ponto: há duas formas de presença ao mundo: uma física, direta, material, outra invisível e espiritual mas nem por isso menos real. Os leigos, para assegurarem sua vocação de presença física ao mundo, têm necessidade da forte selva que lhes vem justamente da presença espiritual dos religiosos e sentiriam falsa cela se, pela embriaguez do “mergulho no mundo” os religiosos acabassem por negar à Igreja a contribuição daquilo que lhes é próprio. Não é um convite à alienação; é antes um convite a pensar que na Igreja, segundo o conceito de São Paulo, continua a ser importante a nítida diferença (e não a confusão!) e a valiosa complementaridade (e não isolamento!) dos carismas e vocações. Não será jamais fecunda a longo alcance (mas o será mesmo numa linha de imediatismo?) uma presença de religiosos nos combates temporais se é a preço dos valores essenciais, mesmo os mais humildes, da vida religiosa.

Terceira reflexão: nume procura de entrosamento torna-se frequente a tentação de dissolver ao máximo, quase até à extinção, daquilo que caracteriza e dá um rosto à vida religiosa e aos religiosos. Parece evidente que isto não é positivo nem para a vida religiosa nem para o entrosamento: um sacerdote religioso imerso na pastoral ao lado de sacerdotes diocesanos, deveria mostrar claramente por suas atitudes que é religioso. A comunidade deveria poder percebê-lo. O mesmo se diria de um religioso não sacerdote ou de uma religiosa no respectivo entrosamento com leigos.

Ultima reflexão, na mesma linha da precedente: não é irreal nem remota em religiosos e religiosas a tentação de abandonar os traços característicos da própria família religiosa para se confundir com os outros e de deixar as obras que realizavam para dar-se ao que se convencionou chamar a “pastoral direta”. Os fatos parece que já começam a mostrar que a riqueza espiritual da Igreja e de seu serviço ao homem reside na variedade. Há empobrecimento e depauperamento cada vez que todos, sob pretexto de unidade ou impressionados por uma certa prioridade, se põem a fazer a mesma coisa. Oxalá os religiosos pudessem ajudar a Igreja a continuar presente nos mais vários campos da sua missão pastoral: educação, assistência, cuidado dos doentes, atendimento aos órfãos, exercício da caridade, etc.

Estou certo de que a comunidade inumana em geral, além da comunidade eclesial, será grata por isso à vida religiosa.

Não me resta senão abençoar-vos em nome do Senhor. Ao fazê-lo peço ao mesmo Senhor que vós sejais, no meio dos homens e para o bem destes, testemunhas e anunciadores das “mirabilia Dei” e das “investigabiles divitias Christi”.

 



Copyright © Dicastero per la Comunicazione - Libreria Editrice Vaticana