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DECLARAÇÃO DA SANTA SÉ
SOBRE AS CONSEQUÊNCIAS
DO EMPREGO DAS ARMAS NUCLEARES
(*)

 

As recentes declarações, segundo as quais se poderia vencer uma guerra nuclear e mesmo sobreviver a ela, deixam que apareça uma falta de apreciação da realidade médica: qualquer guerra nuclear espalharia inevitavelmente a morte, a doença e o sofrimento, em proporções e numa escala gigantesca, e sem uma intervenção médica eficaz ser possível. Esta realidade leva à mesma conclusão a que os médicos chegaram a propósito das epidemias mortíferas da história: só o prevenir consente que se mantenha o domínio da situação.

Ao contrário de uma opinião muito difundida, possui-se um bom conhecimento da amplidão da catástrofe que seguiria o emprego das armas nucleares. E conhecem-se, igualmente bem, os limites da assistência médica. Se este conhecimento fosse apresentado claramente aos povos e aos seus dirigentes em toda a parte no mundo, isto permitiria contribuir para interromper a corrida aos armamentos e por conseguinte contribuiria para impedir o que bem poderia ser a última epidemia da nossa civilização.

As devastações causadas pela arma atómica sobre Hiroxima e Nagasáqui fornecem-nos elementos de apreciação directos das consequências de uma guerra nuclear, mas dispomos também de numerosas apreciações teóricas sobre as quais nos podemos apoiar. Há dois anos uma séria agência oficial publicou os resultados de uma apreciação e descreveu os efeitos de ataques nucleares sobre cidades de dois milhões de habitantes aproximadamente. Se uma arma nuclear de 1 milhão de toneladas (a bomba de Hiroxima atingia cerca de 15.000 toneladas de potência explosiva) explodisse no centro de tais cidades, resultariam, segundo os cálculos, destruições num raio de 180 Km2, 250.000 mortos e 500.000 feridos graves. Entre estes é preciso contar os que sofreriam feridas devidas à respiração atómica tais como fracturas e graves lesões dos tecidos moles, queimaduras superficiais ou da retina, lesões do aparelho respiratório e queimaduras devidas às irradiações, com síndromas agudos e efeitos retardados.

Mesmo nas melhores condições, os cuidados que deveriam ser prestados a estes feridos representariam um esforço médico de uma amplidão inimaginável. O estudo considerava que, em tais cidades ou nos arredores, se se dispusesse de 18.000 leitos, não haveria mais de 5.000 aproximadamente, utilizáveis. Só um por cento dos seres humanos feridos poderia portanto ser neles acolhido, mas é necessário notar que, em qualquer hipótese, ninguém estaria em condições de assegurar o serviço médico que requerem alguns somente dos gravemente feridos, vítimas das radiações e dos desabamentos.

A ineficácia da assistência sanitária é especialmente evidente se consideramos tudo o que se requer para os cuidados dos gravemente feridos. Citaremos apenas, a titulo de exemplo, o caso de um homem de vinte anos, gravemente ferido em consequência de um acidente de automóvel em que o reservatório de gasolina explodiu. Foi hospitalizado no serviço de feridos graves do Hospital de Boston. Durante a hospitalização recebeu 140 litros de plasma pouco antes congelado, 147 litros de glóbulos vermelhos pouco antes congelados, 180 mililitros de placazinhas c 180 mililitros de albumina. Suportou seis operações em que feridas, que se estendiam por 85 por cento da sua superfície corpórea, se fecharam graças a diferentes tipos de enxertos, inclusive enxertos de pele artificial. Durante toda a hospitalização esteve em respiração artificial. Apesar destes meios excepcionais e doutros ainda, que aplicavam todas as possibilidades de uma das instituições médicas mais completas do mundo, morreu no 53° dia de hospitalização. As suas feridas foram comparadas pelo médico responsável às que se encontram descritas quanto a numerosas vítimas de Hiroxima. Se quarenta pacientes deste género houvessem de ser admitidos ao mesmo tempo em todos os hospitais de Boston, o caso ultrapassaria as capacidades médicas da cidade. Imaginemos agora a situação se, além dos milhares de pessoas feridas, as instalações médicas de urgência estivessem na maior parte destruídas.

Um médico japonês, o Professor M. Ichimaru, publicou o seu próprio testemunho sobre os efeitos da bomba em Nagasáqui. Refere: "Procurei ir para a minha escola de medicina em Urakaini, situada a 500 metros do hipocentro. Encontrei muita gente que voltava de Urakami. Os vestuários estavam em andrajos e pendiam dos corpos pedaços de pele. Pareciam fantasmas, com o olhar indefinido. No dia seguinte consegui penetrar a pé em Urakami e tudo quanto eu conhecia desaparecera. Só tinham ficado as carcaças, de cimento e aço, das construções. Em toda a parte havia cadáveres. A cada ângulo de rua estavam dornas de água destinadas a apagar incêndios depois das incursões aéreas. Numa destas dornazinhas, apenas com o tamanho para receber uma pessoa, encontrava-se o corpo de um pobre homem que tinha procurado desesperadamente uma pouca água fresca. Saía-lhe espuma da boca, mas já não estava vivo. O rumor dos choros das mulheres nos campos devastados ia-me seguindo. A medida que me aproximava da escola, via cadáveres enegrecidos, carbonizados, com a ponta branca dos ossos dos braços e das pernas saliente. Quando cheguei, havia ainda alguns sobreviventes. Estavam impossibilitados de se mover. Os mais fortes encontravam-se tão enfraquecidos que se tinham precipitado no chão. Falava-lhes e eles pensavam que escapariam, mas todos afinal iriam morrer nas duas semanas seguintes. Nunca poderei esquecer como olhavam para mim e como me falavam...".

Deve notar-se que a bomba lançada sobre Nagasáqui tinha uma potência equivalente a 20.000 toneladas de TNT, pouco mais do que as chamadas "bombas tácticas" destinadas aos campos de batalha.

Ora até mesmo estas visões de horror são impróprias para descrever o desastre humano que resultaria de um ataque contra um país com a acumulação actual de armas nucleares, que sobem a milhares de bombas de uma potência de um milhão de toneladas de TNT ou mais.

Os sofrimentos da população sobrevivente seriam sem comparação possível. As comunicações, o abastecimento em comida e em água ficariam completamente interrompidos. Nos primeiros dias, não poderia ninguém, sem riscos de radiações mortais, aventurar-se para fora dos edifícios a fim de prestar socorro. A desagregação social depois desse ataque seria inimaginável.

A exposição a doses compactas de radiações diminuiria a resistência às bactérias e aos vírus, e poderia por conseguinte abrir o caminho a infecções generalizadas. As radiações actuariam, além disso, sobre numerosos fetos trazendo lesões cerebrais irreversíveis e deficiências mentais. E a incidência de numerosos tipos de cancro nos sobreviventes teria consideravelmente aumentado. Seriam transmitidas deteriorizações genéticas às gerações vindouras, supondo que as houvesse.

Para mais, o solo e as florestas, assim como o gado em regiões imensas, seriam contaminados, o que reduziria os recursos alimentares. Poder-se-iam esperar muitos outros efeitos biológicos e mesmo geofísicos nocivos, mas no estado actual dos conhecimentos não é possível prever com certeza o que eles seriam.

Mesmo que o ataque nuclear fosse dirigido só contra as instalações militares, seria igualmente devastador para o conjunto do país. Porque as instalações militares estão dispersas, e não concentradas, nalgumas áreas. Deste modo, numerosas armas nucleares explodiriam. Além disso, a radiação propagar-se-ia devido aos ventos naturais e à mistura na atmosfera, matando inúmeras pessoas e contaminando imensas regiões. As instalações de saúde de qualquer país seriam inadequadas para atenderem aos sobreviventes. Um exame objectivo da situação sanitária depois de uma guerra nuclear conduz a uma conclusão única: a prevenção é o nosso único recurso.

É bem evidente que as consequências de uma guerra nuclear não são somente de natureza sanitária. Mas estas obrigam-nos a considerar a lição rigorosa que nos dá a medicina moderna: quando o tratamento de tal ou tal doença é um efeito, ou então se os gastos são demasiado elevados, é preciso concentrar todos os esforços na prevenção. Estas duas condições aplicam-se à guerra nuclear. O tratamento seria praticamente impossível, e as despesas enormes. Podem-se acaso reunir argumentos mais fortes em favor de uma estratégia preventiva?

A prevenção de toda a doença requer uma receita eficaz. Reconhecemos que tal receita deve ao mesmo tempo impedir a guerra nuclear e salvaguardar a segurança. Os nossos conhecimentos e os nossos títulos de investigadores e de médicos não nos permitem, naturalmente, falar com autoridade dos problemas de segurança. Todavia, se os responsáveis políticos e militares fundaram a sua organização estratégica sobre hipóteses erróneas quanto aos aspectos médicos de uma guerra nuclear, nós pensamos não ter responsabilidades a este propósito. Devemos informá-los, informar toda a gente sobre o que seria o quadro clínico no seu conjunto, depois de um ataque nuclear, e sobre a impotência de a comunidade médica apresentar uma resposta válida.

Se não falássemos, correríamos o risco de nos trairmos a nós mesmos, correríamos o risco de trair a nossa civilização.

 

(*) Pontifícia Academia das Ciências, 7-8 de Outubro de 1981: Carlos Chagas, Rio de Janeiro; E. Amaldi, Roma; N. Bochkov, Moscovo; L. Caldas, Rio de Janeiro; H. Hiatt, Boston; R. Latarjet, Paris; A. Leaf, Boston; J. Lejeune, Paris; L. Leprince-Ringuet, Paris; G. B. Marini-Bettòlo, Roma; C. Pavan, São Paulo; A. Rich, Cambridge Mass; A. Serra, Roma; V. Weisskopf, Cambridge Mass.

 

 

 

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