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INAUGURAÇÃO DO ANO JUDICIÁRIO DO TRIBUNAL DA ROTA ROMANA

DISCURSO DO PAPA FRANCISCO

Sala Clementina
Quinta-feira, 25 de janeiro de 2024

[Multimídia]

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Caros Prelados Auditores

Estou feliz por vos receber, como faço anualmente, com todos aqueles que trabalham no âmbito deste Tribunal Apostólico. Agradeço ao Decano e a todos vós o precioso serviço que prestais ao ministério petrino, relativamente à administração da justiça na Igreja.

Hoje gostaria de refletir convosco sobre um aspeto capital deste serviço, um aspeto acerca do qual falei muitas vezes, até com um ciclo de catequeses, ou seja, o tema do discernimento . Tenciono centrar-me naquele discernimento específico que vos compete fazer no âmbito dos processos matrimoniais, sobre a existência ou não de motivos para declarar a nulidade de um casamento. Penso no vosso juízo colegial na Rota, naquele que é feito pelos tribunais colegiais locais ou, onde isto não for possível, pelo juiz único, talvez coadjuvado por dois assessores, assim como no pronunciamento emanado pelo próprio bispo diocesano, especialmente nos processos mais breves, consultando o instrutor e o assessor.

É um tema sempre atual, relativo também ao âmbito da reforma feita nos processos de nulidade matrimonial, bem como à pastoral familiar, inspirada na misericórdia para com os fiéis em situações problemáticas. Por outro lado, a abolição do requisito de uma dupla sentença de conformidade nas causas de nulidade, a introdução do processo mais breve perante o bispo diocesano, bem como o esforço para viabilizar e tornar mais acessível o trabalho dos tribunais, não devem ser mal interpretados, e nunca deve ser descuidada a exigência de servir os fiéis com um ministério que os ajude a compreender a verdade sobre o seu casamento. Trata-se de um serviço, de um serviço que prestamos. Como afirmei na introdução do Motu proprio Mitis iudex Dominus Iesus , a finalidade é favorecer «não a nulidade matrimonial, mas a celeridade dos processos, não menos do que uma justa simplicidade para que, devido ao atraso na definição do juízo, o coração dos fiéis que esperam o esclarecimento da sua condição não seja prolongadamente oprimido pelas trevas da dúvida». Por isso, seguindo os passos dos meus Predecessores, desejei «que as causas de nulidade matrimonial sejam tratadas por via judicial, não administrativa, não porque a natureza da situação o imponha, mas porque o exige a necessidade de tutelar ao máximo nível a verdade do vínculo sagrado: e isto é assegurado precisamente pelas garantias da ordem judicial».

Ao mesmo tempo, ter sublinhado a importância da misericórdia na pastoral familiar, como fiz em particular com a Exortação apostólica Amoris laetitia, 1 não diminui o nosso compromisso na busca da justiça, em relação às causas de nulidade. Pelo contrário, precisamente à luz da misericórdia, em relação às pessoas e às suas consciências, é importante o discernimento judicial sobre a nulidade. Ele possui um valor pastoral insubstituível, inserindo-se harmoniosamente no conjunto do cuidado pastoral devido às famílias. É assim que se realiza o que afirmava S. Tomás de Aquino: «A misericórdia não tira a justiça, mas é a plenitude da justiça».2

Como bem sabeis pela vossa própria experiência, a tarefa de julgar muitas vezes não é fácil. Alcançar a certeza moral sobre a nulidade, superando a presunção de validade no caso concreto, implica a realização de um discernimento para o qual todo o processo, especialmente a investigação preliminar, está ordenado. Este discernimento constitui uma grande responsabilidade que a Igreja vos confia, pois influencia fortemente a vida das pessoas e das famílias. Deveis desempenhar esta tarefa com coragem e lucidez, mas antes de mais é decisivo contar com a luz e a força do Espírito Santo. Prezados juízes, sem oração não se pode ser juiz. Se alguém não reza, que se demita, por favor, é melhor assim. No Adsumus,  a bela invocação ao Paráclito, recitada nos encontros do vosso Tribunal, lê-se: «Estamos aqui diante de Vós, Espírito Santo, estamos todos reunidos em vosso nome. Vinde a nós, assisti-nos, descei ao nosso coração. Ensinai-nos o que devemos fazer, mostrai-nos o caminho a seguir todos juntos. Não permitais que nós, pecadores, lesemos a justiça, não deixeis que a ignorância nos engane, que a simpatia humana nos torne parciais, pois somos um só em Vós e em nada nos afastamos da verdade». Lembremo-nos sempre disto: o discernimento faz—se “de joelhos” — e um juiz que não sabe pôr-se de joelhos é melhor que se demita — implorando o dom do Espírito Santo: só assim é possível chegar a decisões que vão na direção do bem das pessoas e de toda a comunidade eclesial.

Portanto, a objetividade do discernimento judicial exige que se esteja livre de todos os preconceitos, tanto a favor como contra a declaração de nulidade. Isto implica libertar-se quer do rigorismo daqueles que pretenderiam ter certezas absolutas, quer de uma atitude inspirada pela falsa convicção de que a melhor resposta é sempre a nulidade, aquilo a que São João Paulo II chamava o «risco de uma compaixão mal entendida [...], só aparentemente pastoral». Na realidade — acrescentava o Papa — os caminhos que se afastam da justiça e da verdade acabam por contribuir para afastar as pessoas de Deus, alcançando o resultado oposto àquele que se procurava em boa fé».3

O discernimento do juiz requer duas grandes virtudes: a prudência e a justiça, que devem ser informadas pela caridade. Existe uma ligação íntima entre prudência e justiça, uma vez que o exercício da prudentia iuris tem por objetivo saber o que é justo no caso concreto. Portanto, uma prudência que não diz respeito a uma decisão discricionária, mas a um ato declarativo sobre a existência ou não do bem do casamento; portanto, uma prudência jurídica que, para ser verdadeiramente pastoral, deve ser justa. O discernimento justo implica um ato de caridade pastoral, até quando a sentença é negativa. E também um risco.

O discernimento sobre a validade do vínculo é uma operação complexa, a respeito da qual não devemos esquecer que a interpretação do direito eclesiástico deve ser feita à luz da verdade sobre o matrimónio indissolúvel, que a Igreja salvaguarda e difunde na sua pregação e missão. Como ensinava Bento XVI, «a interpretação do direito canónico deve ter lugar na Igreja. Não se trata de uma simples circunstância externa, ambiental: é um apelo ao próprio húmus  do direito canónico e das realidades que ele regula. O sentire cum Ecclesia tem sentido também na disciplina, por causa dos fundamentos doutrinais sempre presentes e atuantes nas normas jurídicas da Igreja».4  Eis o que vos peço, a vós juízes: sentir com a Igreja! E pergunto a cada um de vós: rezais, para sentir com a Igreja? Sois humildes na oração, pedis ao Senhor luz para sentir com a Igreja? Volto a este ponto: a oração do juiz é essencial para a sua tarefa. Se um juiz não reza ou não sabe rezar, é melhor que vá desempenhar outra profissão.

Concluindo, gostaria de recordar que o discernimento sobre a nulidade é corroborado e garantido pela constatação de ser sinodal.5  Quando o tribunal é colegial, como geralmente acontece, ou quando há apenas um juiz, mas ele se consulta com quem de direito, o discernimento acontece num clima de diálogo ou debate, em que a franqueza e a escuta mútua são fundamentais para a busca comum da verdade. É também um estudo prévio e sério. Como já disse, neste serviço é essencial invocar o Espírito Santo, enquanto nos esforçamos por utilizar todos os meios humanos para apurar a verdade. Por isso, é importante que a investigação preliminar seja feita com atenção, para não incorrer num juízo precipitado e apriorista, assim como é necessário que, para cumprir adequadamente o seu munus , o juiz cultive a sua formação permanente através do estudo da jurisprudência e da doutrina jurídica. Cabe a vós, estimados Prelados auditores, uma especial responsabilidade de julgar: por isso, recomendo-vos a docilidade ao Espírito Santo e a disponibilidade a ser agentes de justiça em todas as circunstâncias.

Confio o vosso trabalho a Maria Santíssima, Virgo prudentissima  e Speculum iustitiae , e abençoo-vos de coração. Por favor, não vos esqueçais de rezar por mim, pois este trabalho não é fácil! Às vezes é divertido, mas não é fácil.

Obrigado!

 

1 Cf. sobretudo o capítulo VIII.

2 Summa Theologiae , I, q. 21, a. 3, ad 2. Cf. Exortação apostólica pós-sinodal Amoris laetitia, 311.

3 Discurso à Rota Romana , 18 de janeiro de 1990, n. 5.

4 Discurso à Rota Romana , 21 de janeiro de 2012.

5 Discurso à Rota Romana , 27 de janeiro de 2022.



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